A cada pulo simulando as manobras em seus pés, os cochichos de que Stevie estava ficando “doido de cadeia” se espalhavam pela cela. A lei da facção que proíbe zombar de outro integrante o salvou de algumas sessões de bullying. Em novembro daquele ano, o ex-traficante sairia da prisão pela segunda vez e iniciaria uma jornada de sucesso sobre as quatro rodas que o levou até para Los Angeles e Barcelona.
Anderson Stevie é Anderson de Oliveira Paixão Pereira, de 25 anos, morador de São Gonçalo que compete nos Jogos Cariocas de Verão, na Praça do Ó, na Barra da Tijuca, neste sábado (18), a partir das 10h.
O INÍCIO NO SKATE
Anderson, na pré-adolescência, era roqueiro por influência de um primo mais velho. Ele conta que usava uma cabelo comprido, escorrido, que de acordo com ele mesmo era "feio pra c...". Um dia assistindo ao clipe "Back to School", da banda "Deftones", ele viu uma sessão de skate dentro do colégio e resolveu começar no esporte.
Aos poucos, o cabelo escorrido foi perdendo para a máquina de raspar. O primeiro ponto de evolução no esporte foi na escola com um grupo de 10 amigos que se reuniam para fumar maconha. Chapados, os amigos pediam para Stevie pular cada vez de obstáculos maiores. Na onda, Stevie foi crescendo seu patamar sobre o skate.
Além do Ciep, Anderson também andava na única pista que existia em São Gonçalo, na Praça Chico Mendes. Mas, em 2012, quando Anderson estava na prisão, a pista foi destruída pela prefeitura de Aparecida Panisset e nem uma outra foi construída depois.
- Hoje, preciso sair de São Gonçalo para andar de skate. O único lugar que tem perto daqui é uma quadra de cimento, que ficamos dando uma volta, mas não tem muitos obstáculos. Só dois corrimãos.
CRIME CORRE NO SANGUE
"Até os 14 anos eu era roqueiro. Tinha um cabelo grande, feio pra c... Aí comecei a andar de skate. Mas a mulherada da favela não quer saber de rock muito menos de skate. Elas gostam é de quem tem moto, dinheiro. Na prisão, anos mais tarde, refleti muito sobre isso. Tenho uma teoria de que a maioria dos garotos entram pro crime por causa das mulheres", pensa Stevie.
O início no crime foi aos poucos, ele chegou a conciliar a vida de traficante com a do skatista. Até que, com 18 anos, foi participar de uma competição em Angra dos Reis e errou todas as manobras. Sem ganhar um centavo com o esporte, ele decidiu abandonar a carreira de skatista e ingressou de cabeça no tráfico.
Por ser sobrinho de um dos chefes, Stevie tinha privilégios e isso causava inveja em seus colegas de boca de fumo. Stevie também abusava e quase pagou com a vida por isso.
— No crime, não existe folga. O momento de tirar férias é na cadeia. Mas uma vez fiquei dois dias sem aparecer para trabalhar na firma dois dias. Quando voltei, o gerente veio me cobrar. Achei que ia levar porrada, mas ele apontou a arma na minha cabeça. Quando disparou, a arma falhou. Saí correndo, ele ainda deu mais dois tiros, mas consegui fugir. Fiquei mais de um ano sem aparecer na favela. Só voltei quando ele morreu — lembra.
DUAS TEMPORADAS NA CADEIA
Na primeira prisão, com pouco mais de 18 anos, em 2012, Stevie estava com a arma apontada para a entrada da favela quando surgiram policiais pelo mato. O ex-traficante não sabe explicar como a autoridade não o matou ali mesmo. E seu advogado não tem ideia de como ele conseguiu se livrar da prisão um mês e meio depois para aguardar o julgamento em liberdade. Afinal, ele havia sido preso com três menores de idade, rádios e 157 papelotes de cocaína.
Mesmo depois da primeira temporada na prisão, Stevie não largou o crime. O medo e a tensão que travavam seu desempenho no skate e o impedia de ganhar ou ir melhor nos campeonatos, era muito maior do que o de participar de tiroteios. Até que em 2013, o filme se repetiu. Stevie foi preso na boca de fumo enquanto trabalhava. E foi para a segunda temporada na cadeia. Esta duraria seis meses.
— Na cadeia, eu percebi que a única maneira de eu sair do crime era através do skate. Por isso passei a treinar em cima de um skate invisível. O pessoal não tirava sarro de mim porque era proibido, mas pensavam que tava ficando maluco. Até que um dia entrou um celular na prisão que tinha internet. Eu era o única que sabia mexer. Todos queriam ver pornô. Mas obriguei a ver um filme meu de skate antes. A partir daí, eles passaram a me respeitar mais. Me chamavam de “Doskate”, mesmo apelido que eu tinha na boca — lembra Stevie, que ficou sem praticar o esporte dos 18 aos 22 anos.
DA BOCA DE FUMO PARA A CALIFÓRNIA
Marqueteiro, carismático, sorridente e bom de papo, Stevie sabe que o tempo afastado no esporte fez com que ele ficasse para trás de outros skatistas de sua geração. Mas passou a investir em sua história de vida para brilhar os olhos dos patrocinadores.
— Nunca me dei bem em campeonato. Até porque fico nervoso. Depois que sai da prisão, a única maneira de evitar a volta ao crime era viajar e competir. Sempre fiz amizade fácil. Eu não ganhava as competições, mas contava minha história de vida e voltava com um patrocínio, telefone de empresário.
As marcas que o apoiam ou já apoiaram carregam em seus nomes um pouco da história do skatista: Bastard (Bastardo), Thug (Bandido), Freeday (Dia Livre) e Dealer (Revendedor).
Numa dessas viagens, Stevie venceu uma competição de “melhor manobra” e, de prêmio, ganhou uma viagem para Los Angeles. Pelo seu passado, ele teve o visto americano negado. Mas a competição foi organizada por uma marca gigante do esporte mundial, que fez um meio de campo junto à embaixada e arranjou um visto de dez anos para Stevie. Hoje, Stevie tem mais de 30 mil seguidores no Instagram, seus vídeos tem outras milhares de visualização no Youtube, já viajou para os Estados Unidos duas vezes e conheceu Barcelona.
RECONHECIMENTO DO JORNAL LOCAL
Nas duas vezes que foi preso, Anderson Stevie estampou a capa do jornal local de maior circulação em São Gonçalo. Curiosamente, seu pai tem o jornal até hoje em casa guardado. Coincidentemente, o filho do dono do jornal andava de skate e era amigo de pista de Anderson.
- Quando ganhei a viagem para Los Angeles, encontrei meu amigo e reclamei brincando com ele que o jornal havia estampado meu rosto na capa as duas vezes que havia sido preso. E que agora que ganhei o campeonato, eu merecia ser capa também. O pai dele adorou a história. Não só me colocou na capa com a história do campeonato como tirou do ar todas as matérias do jornal que falavam sobre a minha prisão - conta Stevie
Por: Victor Costa
Foto: Guito Moreto
Fonte: O Globo
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